Se você ainda acha que a América Latina é feita de católicos conservadores, famílias patriarcais e jovens obedientes, tenho uma notícia: seu mapa mental está vencido. E já devia ter sido reciclado.
A nova América Latina que emerge dos dados — e das ruas — é outra: mais diversa, menos previsível, cheia de contradições. É um território onde a fé não está mais nas mãos da Igreja, mas dos algoritmos; onde o masculino hegemônico perdeu o monopólio da voz pública; onde jovens não querem repetir a cultura, mas remixá-la.
Segundo Calderón e Castells no livro ‘A Nova América Latina’, o continente vive um “choque de civilizações interno” — não entre nações, mas dentro de cada bairro, cada feed, cada família. O velho e o novo dividem o mesmo sofá, mas não falam mais a mesma língua. Há quem ache que isso é crise. A gente prefere chamar de fermentação histórica.
Essa edição é sobre isso: o que está mudando de forma invisível, mas irreversível. As novas crenças, os novos gêneros, os novos desejos que estão moldando o futuro cultural da região — e por que entender essa transição é chave para quem quer criar, liderar ou simplesmente sobreviver na América Latina do agora.
Guatemala
Recentemente trabalhei em um projeto para uma marca de bebida que visava em entender as nuances culturais da Guatemala, sobretudo explorar os pontos de conexões de novas gerações. Para iniciar esse projeto - e tantos outros - eu sempre parto do ponto de vista social, entendendo uma timeline dos últimos anos, sempre consultando uma base de dados do país e experts que conseguem explicar as texturas culturais e sociais desse país. Nesse projeto especificamente, me chamou muito a atenção da demografia guatemalteca, uma das mais jovens da América Latina.
A urbanização tem avançado na Guatemala, com 54% da população vivendo em áreas urbanas e 46% em zonas rurais, segundo o censo de 2018.
Em termos de estrutura etária:
0-14 anos: 40,9%
15-64 anos: 54,1%
65 anos ou mais: 4,3%
Tendo uma das populações mais jovens da região, você pode imaginar que ao ler esses dados a gente pode imaginar que, por se tratar de novas gerações, temos um pensamento libertário de progresso, típico da juventude em toda a história da humanidade, mas não é bem assim.
Esses jovens foram educados através de uma cultura de imigração e valores estadounidense muito forte somado ao crescimento do número de evangélicos no país.
De acordo com dados do Latinobarómetro, em 1996, 25% da população guatemalteca se identificava como evangélica. Esse número aumentou para 46,1% em 2023, ultrapassando os católicos, que representavam 42,8% no mesmo ano.
Isso impacta em uma série de novos valores que, visto de fora, não seriam perceptíveis, pois quando pensamos em Guatemala temos uma série de estereótipos construídos, como a cultura maia que, apesar de ser ainda fonte de muita atividade cultural no país, se restringe à zonas mais rurais e “menos viralizáveis”. Termo horrível. Perdão. Mas faz o ponto.
A nova América Latina: entre TikTok, Jesus e migração
A Guatemala é só um exemplo — mas ela ajuda a colocar o dedo em algo maior: há uma nova América Latina nascendo, silenciosa, dispersa e cheia de tensões. Não é a América Latina dos editoriais europeus nem dos slogans de marca. É a América Latina dos shoppings lotados no sábado, das igrejas pentecostais com som estourado, dos jovens que consomem K-pop, cantam em espanhol neutro, sonham com o Texas e acham que casamento é coisa séria.
Dá pra organizar essa nova paisagem em alguns pilares:
1. Juventude conservadora
Sim, a população é jovem. Mas jovem não significa progressista.
Em muitos países, cresce uma juventude evangélica, disciplinada, pragmática, avessa a militâncias identitárias.
Essa juventude não se conecta com grandes ideologias — mas sim com aspirações de ordem, sucesso e fé.
2. Cristianismo 2.0
O crescimento evangélico na América Latina não é só uma mudança religiosa — é uma mudança de imaginário coletivo.
Fala-se de milagre, disciplina, propósito.
Esse discurso molda o consumo, a moralidade, a política e até os filtros de TikTok.
Não entender isso é não entender o Zeitgeist.
3. Migração como mito fundador
Quase toda família tem um primo nos EUA ou na Espanha.
O projeto de vida passa por um aeroporto.
Essa migração não é só econômica — é simbólica.
Ela forma uma cultura ambígua, onde se fala um espanhol cheio de palavras gringas, se sonha com o norte, mas se vive com os códigos locais.
4. Cultura pop hiperlocal
Apesar da globalização, o que explode nos feeds não é Hollywood — são realities locais, influenciadores regionais, funk, corrido tumbado, trap argentino e novelas turcas.
A globalização fragmentou o mainstream. E o que sobra são microculturas digitais com sotaque local e remix global.
5. Nova moral do sucesso
A meritocracia latino-americana é emocional, não racional.
Não se trata de “trabalhar duro” — mas de manifestar, acreditar, ter fé, insistir.
O sucesso é uma combinação de oração, resiliência e autoajuda.
Um misto de empreendedorismo evangélico com mindset de coach.
Enfim, esses dados e essa pensata sobre América Latina são para pensarmos melhor nas configurações sociais, culturais e políticas da região e não somente criar um imaginário coletivo, colorido e feliz sobre as nossas sociedades. As transformações estão em curso e com impactos imediatos.
Por outro lado, nada disso apaga o pensamento progressista que também pulsa com força na América Latina — especialmente em sociedades como Argentina, Uruguai, Brasil e outras. Como dizem meus amigos hispanohablantes, "una cosa no quita la otra". Mas é fundamental reconhecer que novos cenários estão em curso, e que a região hoje abriga tensões simultâneas entre avanço e retração, entre utopia e conservadorismo pragmático.
Tiny Desk, alma grande: Buena Vista Social Club ao vivo
Em meio a tantas transformações culturais e demográficas, às vezes é preciso respirar fundo — e lembrar das raízes.
Recentemente, o lendário Buena Vista Social Club lançou seu Tiny Desk Concert, e assistir a esse vídeo é como viajar no tempo e no espaço. Não porque pareça ultrapassado — mas porque soa eterno.
Para quem não conhece, o Buena Vista nasceu quase como um acidente histórico.
Nos anos 1990, o guitarrista americano Ry Cooder e o produtor Nick Gold foram a Havana gravar um disco com músicos africanos — mas, por um desencontro de agendas, acabaram reunindo veteranos da cena musical cubana dos anos 1940 e 50, muitos deles esquecidos pelo mercado e pela história.
O que saiu dessa gravação foi pura magia: Compay Segundo, Ibrahim Ferrer, Rubén González, Omara Portuondo — nomes que personificam o bolero, o son cubano, o guajiro — colocaram a alma de Cuba num disco que, em 1997, conquistou o mundo.
No Tiny Desk, o que vemos não é nostalgia — é potência.
A nova formação da banda, com Omara Portuondo como grande dama aos 93 anos, mostra que certas coisas não envelhecem: elas viram legado, viram pulsação de uma cultura viva.
Cada acorde é uma lembrança de que a latinidade não se explica em slogans publicitários — ela se sente nos detalhes, no improviso, na vibração entre gerações.
Assista. Com o coração aberto.
E lembre-se: o futuro da América Latina também passa por sua memória afetiva.
(A parte mais legal) Para colocar na playlist:
1 - Quién Me Mandó (Geminis) - Bomba Estereo y Rawayana (Venezuela y Colômbia)
2 - Morena - Neton Vega y Peso Pluma (México)
Da pra sentir o carinho que você tem ao falar da América Latina! Uma viagem cultural em cada parágrafo! Muito gosto de ler, Ti!